quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

O assalto ao trem de passageiros


      A guerra terminou, mas ninguém está dispensado, - disse o Coronel Manoel Fabrício Vieira ao seu bando de vaqueanos, com o fim da Guerra do Contestado. Coronel Fabrício queria continuar com homens, principalmente com os de confiança, a cumprir suas ordens. Entre eles havia vaqueanos certeiros de pontaria e também hábeis no manejo com arma branca, provados em entreveros durante a guerra.
     Os outros chefes civis, como Pedro Ruivo, dispensaram seus grupos, mas continuaram vivendo como no tempo da guerra, espalhando pânico nas cidades vizinhas ao conflito. Com eles, Neco Vacariano e Adão Mendes, conhecido como Adãozinho, entre outros, cometeram atrocidades em Serro Verde, Pangaré, Estiva, Mafra, Papanduva e por onde passavam.
      Coronel Fabrício fez posse e legalizou uma considerável área de terras à margem direita do Rio Iguaçu, em frente à estação de Jararaca, Felipe Schmidt, SC, a qual denominou Fazenda Chapéu de Sol. O sustento do coronel e de seu grupo vinha da extração da erva-mate, corte de lenha para a estrada de ferro e para os vapores que navegavam no Rio Iguaçu.
      Não muito afeitos a esse árduo trabalho, o grupo comandado pelo Coronel Fabrício e seu genro Salvadorzinho, conhecido como Dente de Ouro, fazia incursões por fazendas na fronteira SC/PR, com saques e até raptos de donzelas. Homem odiado pela população da região, o Coronel Fabrício, no regresso de suas barbaridades, cuidadoso, não voltava diretamente para sua fazenda. Hospedava-se na fazenda de algum conhecido e ali permanecia até quando se sentisse seguro para voltar. Nessas propriedades, quando havia tentativas de saques por outros bandos, durante a presença do Coronel Fabrício e de seu grupo, prevalecia a lealdade em consideração à hospitalidade do amigo e a fazenda era defendida até as últimas consequências.
      Certa feita, Salvadorzinho, o Dente de Ouro, acostumado a espalhar maldade por onde passava, encontrava-se em Valões. Ali, o valentão teve um entrevero com a polícia e tombou morto. Nunca se soube, ao certo, quem foi o matador. Substituiu-o na chefia do bando, a convite do Coronel Fabrício, um indivíduo com extensa ficha no mundo do crime, filho de Conceição Sete Facadas. A fama do coronel e de seus comparsas, na prática de atrocidades, ganhou fronteiras e ele já aceitava algum trabalho extra, que consistia na eliminação de pessoas inimigas dos que podiam pagar por esse trabalho, entre outros golpes.
      Foi então que o Coronel Manoel Fabrício Vieira, planejou o mais ousado golpe de assalto a trem de passageiros. Era o ano de 1929, o trem expresso ou trem de tabela fazia a ligação Curitiba-São Francisco do Sul e Porto União, com conexão em Mafra, passando em Jararaca por volta das 19 h.
      A cada dois dias o Coronel Fabrício mandava comprar jornal. Assim, mantinha-se informado sobre a movimentação de pessoas importantes que viajavam nos trens, que, geralmente, traziam valores para efetuar pagamentos de funcionários e obras do governo. O Coronel Fabrício ficou sabendo que no trem de passageiros daquele dia, viajaria um tenente do Exército, com o pagamento destinado a um Batalhão Ferroviário que estava construindo a estrada de Barracão (SC). O valor era estimado em 200 contos de réis (200.000$000). O astuto coronel, que arquitetou o assalto, começou a pôr em prática seu ousado plano.
      À tarde, apareceu na estação seu imediato, o filho de Conceição Sete Facadas, um sujeito de pouca conversa, queixo longo, cabisbaixo e de olhar desconfiado. Com ele estava um indivíduo trajando roupas remendadas e sapatos bico fino, contrastando contrastando com aspecto de mendigo, porém não chegou a despertar suspeita.
Em seguida, apareceu um telegrafista que havia se reunido ao bando. Ouvindo o “pode”, acenou ao companheiro que esperou o agente da estação anunciar pelas três pancadas do sino que o trem já estava entre Santa Leocádia e Jararaca. Eles esperaram que o guarda-chaves se dirigisse à recepção levando a bandeira verde, o que significava que a situação era normal para a chegada e passagem do trem.
      O filho de Conceição foi ao escritório e, baixinho, falou ao agente da estação:
– É um assalto. É melhor você se render que vai terminar tudo bem. Agora entregue o aparelho do telégrafo ao meu amigo. Não tente nada porque senão você é um homem morto.
      O assalto transcorria conforme o planejado, sem que ninguém desconfiasse, até a chegada do trem. Enquanto isso, o Coronel Fabrício e seus homens se aproximavam. Alguns dos pistoleiros já apareciam entre as pilhas de lenha aguardando orientação dele. Quando o trem chegou, o primeiro a ser rendido foi o maquinista Napoleão.
– Saia da locomotiva e fique quieto! Não faça nada, senão você vai pro inferno! – gritou um dos homens do bando, ameaçando Napoleão, que tremia sem parar.
– Pare de tremer, gordo! Deixe de ser medroso! Já sei. Você vai pegar na mão daquele sujeito e ficar de mão dada com ele, seu maricas!
      Napoleão, envergonhado e com medo, pegou na mão de um sujeito mal encarado que estava no local. Apesar de humilhado, o maquinista não ousou contrariar o bando, do qual ele já havia ouvido falar.
      Os homens do coronel Fabrício invadiram os vagões e roubaram o que encontraram com os passageiros: dinheiro, jóias, relógios e outros pertences de valor. No vagão de primeira classe encontrava-se o tenente e sua valiosa mala, por precaução, colocada embaixo do assento. Durante o saque, as malas que estavam no porta-malas do vagão foram atiradas pelas janelas, caindo nas mãos de outro grupo de capangas do coronel Fabrício, chefiados pelo Tenente Enéas, tio de uma das esposas do coronel. Tudo foi muito rápido e, sem demora, um trem com poucos vagões se preparou para transportar a maior parte do bando até a estação de Canoinhas, hoje Marcílio Dias, lugar ideal para um saque, no entender do coronel. Era uma vila constituída de colonos teuto-brasileiros, onde predominava a Família Olsen.
      O que aconteceu na estação de Jararaca se repetiu nessa estação. Renderam o agente e demais funcionários da Rede e exigiram a entrega do aparelho de telégrafo ao telegrafista do bando. Com o controle absoluto da situação, os salteadores se dividiram em grupos e saíram pelo povoado onde se realizava uma festa de aniversário, com dança. A presença dos malfeitores desencadeou pânico entre os presentes. Um rapaz, apavorado, tentou fugir, mas foi mortalmente atingido por um balaço.

      O saque rendeu pouco e o bando chefiado pelo Coronel Fabrício, estava disposto a prosseguir até Mafra e saquear as duas cidades: Mafra e Rio Negrinho e dali voltar a Canoinhas, nessa época Ouro Verde, chamada de Vila, distante 4 km de Marcílio Dias, então estação de Canoinhas. José Cassou era agente da estação ferroviária de Mafra. Experiente, ficou intrigado com o silêncio dos aparelhos e com o sumiço do trem de passageiros. Então, resolveu chamar a próxima estação, a de Barracas, e pediu um “pode” simulado para um trem de forças do Exército, cuja mensagem foi captada pelo telegrafista do bando, que avisou o coronel.
      Estrategista, porém preocupado, o Coronel Fabrício, ordenou ao maquinista Napoleão para abastecer com lenha e água uma locomotiva, para ser largada na linha, sentido Mafra, com o objetivo de obstruir a passagem do trem de força. Com os ponteiros indicando alta pressão, Napoleão soltou os freios devagar e permaneceu embarcado até a chave de desvio, para aí saltar da máquina, pois se não o fizesse, os melhores atiradores do bando tinham suas armas apontadas para ele, com ordem para atirar.
      A locomotiva, sem maquinista, foi parar na linha entre Três Barras e Bugre. Marcelo Cassou, irmão de José, era agente da estação de Bugre e, ao final do expediente, recebeu o “boa noite” de Mafra, fechou a estação e foi dormir, pois até esse momento não havia percebido nada de anormal.
      Apreensivo com a possibilidade de algo sair errado, o Coronel Fabrício determinou o regresso para a estação de Jararaca. Apesar de frustrado com a notícia do “trem de força”, o coronel confiava no conteúdo da mala do tenente, que imaginava estar em poder de seus homens. A retirada ocorreu às pressas. Assim, as localidades de Piedade (hoje Taunay), Lagoa do Norte (Paula Pereira) e Santa Leocádia foram poupadas.
      De volta a Jararaca, outras duas locomotivas foram largadas na linha, uma sentido Mafra e outra sentido Porto União. Os funcionários foram liberados e os aparelhos de telégrafo inutilizados. A partilha seria feita na Fazenda Chapéu de Sol, do coronel Fabrício, no Paraná.
      A primeira mala a ser aberta seria a do tenente pagador, que ficou com o tenente Enéas, homem de maior confiança do coronel. Forçaram o fecho, mas não conseguiram abri-lo. Impacientes, arrebentaram a tampa e, para a decepção de todos, só havia roupas femininas. As outras malas também foram abertas e só havia roupas.
– Diabos! Fomos enganados! reclamou o Coronel, desapontado.
      No dia seguinte, a direção da Rede, autoridades policiais e o Exército tomaram as providências para restabelecer o tráfego de trens. Procederam a uma busca minuciosa nos vagões de onde foram retirados objetos desprezados pelos saqueadores. Depois da revista geral, apenas uma mala comum de viagem foi retirada debaixo de um assento de primeira classe que viajara indo e voltando a Marcílio Dias, com dezenas de bandidos. A mala e os outros objetos foram enviados à estação de Mafra e entregues a José Cassou. Cassou jogou a mala embaixo de sua mesa, onde permaneceu por algum tempo até que um dia o maquinista Napoleão chegou dizendo:
– No dia do assalto eu carregava uma mala, com roupas da minha esposa, que desapareceu da locomotiva. Por acaso ela está aqui?
– Aqui tem uma.
– É essa mesma! – disse Napoleão.
      No entanto, a esposa de Napoleão, reagiu dizendo que não era aquela mala e devolveu-a a Cassou, que a colocou novamente debaixo de sua mesa.
      Tempos depois, o tenente, que portava a mala com o dinheiro no dia do assalto, em conversa na estação de Mafra com José Cassou, comentou sobre o desaparecimento da mala com o dinheiro, para o pagamento do Batalhão.
– Depois do assalto foram recuperadas várias malas de passageiros e devolvidas aos seus donos. Só uma mala, que foi encontrada debaixo de um assento do vagão de primeira classe, ainda está no meu escritório, porque não sabemos de quem é. – Informou Cassou.
– Então é a mala do dinheiro! Por segurança eu guardei debaixo do assento do trem, – e pediu para vê-la.
     Cassou concordou, porém, por precaução, pediu a presença dos superiores do tenente, de diretores da Rede e abriu a mala que, além de objetos de uso pessoal, continha 180.000$000 (cento e oitenta mil réis), a mesma quantia que o tenente portava no dia do assalto. Todos ficaram surpresos.
– Eu nunca imaginei que essa mala era a que trazia o dinheiro! Achei que ela estava com os bandidos. Agora, assine esse recibo que comprova a entrega da mala, – disse Cassou, aliviado.
      Mais tarde, o Coronel Fabrício Vieira trocou o lenço vermelho, divisa que usava deste o berço natal, Lagoa Vermelha, RS, pelo lenço verde dos Pretistas do Partido Republicano. Um dia, quando seguia com destino a Curitiba, ao passar pela cidade da Lapa, PR, foi denunciado. Sitiado no Capão do Soldado foi preso pelo delegado Nabi Mansur Paraná, que o reconduziu para Canoinhas. Durante a prisão do Coronel, no entrevero com a polícia, o filho de Conceição Sete Facadas foi assassinado e o Coronel Fabrício foi atingido por um tiro de raspão. Conta Alexandre Weinhart, nascido a 22 de outubro de 1914.
Texto do livro: Trens de Arnoldo Monteiro Bach
Foto: Fátima Santos

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